E naquela que era a manhã entre os tempos, Ela sorriu vagarosamente. Ela já havia feito tudo isso muitas vezes e agora era hora de recomeçar. Era assim que Ela se sentia a cada giro da Roda, que, inexorável, prosseguia em sua dança infinita e indiferente a todos. Ela se debruçou no parapeito da janela e enxergou ao longe a poeira de um tropel de cavalos. Ah, novidades, já não era sem tempo! Arrumou caprichosamente os bastos cabelos loiros, que já se entremeavam de branco, o que os fazia brilhar ainda mais. Ela olhou suas mãos, as manchas da idade surgindo, as veias azulando e contando no tempo as marchas de suas muitas vidas. ” – E qual mulher não as tem – tanto as manchas, quanto as muitas vidas?” Esse pensamento a fez sorrir, em amor e sabedoria, era isso o segredo de todos os ciclos: aprender as lições, mesmo as mais amargas, com alegria e uma certa sisudez, um misto de fingida indiferença, um toque de cinismo, que vê o efêmero se apagar com humor ao invés de gemidos. Ela correu pelas escadas, esquecendo que já não era jovem. Correu ao encontro daquela que descia de seu cavalo branco e magnífico: “Saudações minha Mãe!” disse a pequena preciosa que galopara tanto tempo que as faces mostravam o cansaço acumulado. O rosado de sua tez fazia lembrar as rosas de Litha, enquanto o castanho dourado de seus olhos trazia as lembranças das folhas de Mabon. “Mãe, onde Ele está?” – ela olhava em volta, impaciente e temerosa de que tivesse chegado muito tarde. Ela sorriu, mas era um sorriso triste. “Venha criança.” E a Senhora a conduziu a um pátio interno onde a luz filtrada pela tarde que caia sabia doce, e canções de pássaros e aromas mil lembravam a distante primavera. Como aquele nicho de calor e aconchego podia existir e preservar, milagrosamente, os tempos de calor, ninguém poderia explicar. Só a Senhora e seu poder de Mistério e preservação poderiam consegui-lo, mas havia um limite para tudo. Se se olhassem bem as rosas, se perceberiam as folhas já corroídas pelo vento gelado, os pássaros migravam a cada dia para lugares mais quentes, os animais fugiam para começar a hibernar, tudo falava da morte do Sol. Mas nada poderia falar mais sobre a morte do Sol do que vê-Lo, agonizante. Embora pálido, Ele não parecia sofrer. Se entregara sabiamente a seu próprio destino e um brilho de ânimo passou como um lampejo por seus olhos: “Olá, minha Criança adorada! Olá, Filha do Sol!” Ele estendeu a mão em uma carícia suave e a jovem conheceu todo o amor que o Pai nutria por Ela. Ele começou: “Minha filha, esta é uma despedida, e embora nunca deixe de ser difícil, nem de ser triste, eu digo – alegre-se, pois é tempo de comemorar a Vida que é sempre a mesma, a alegria que nunca se esvai e que me acompanha até mesmo na volta ao ventre Dela.” Ele estendeu a mão para o ventre grávido da Senhora e o acariciou também. “Quando amanhã as flautas tocarem seus lamentos e minha alma subir acompanhando o vôo do primeiro pássaro que a pegar, quando ele deixá- la cair na terra, como semente, eu brotarei. E serei de novo o Jovem Que Espalha o Pólen, O Homem Verde, aquele que é o Senhor de todas as coisas que crescem. E correrei novamente na Grande Caçada com os gamos, como está escrito no ciclo de todos os tempos, onde o Universo não acaba e a alma de tudo o que há se cria e recria a cada centelha de tempo.” Ela só pensou, não formulou a pergunta. Pensava ;”Pai, que inutilidade! Tudo nasce,cresce, morre, a despedida é tão triste e tudo volta. Será que isso nunca termina, vc não contesta isso? Vc não deseja que acabe?” Mas Ele, já tão perto do desfazimento do Grande Útero Dela, ouviu cada pensamento e respondeu, suave como o acariciar de uma pluma. “Ah filha, a cada ciclo, é Ela que manda ” e apontou a Mãe. A menina voltou os olhos para Ela por um momento em fúria muda. Ela, que já conhecia aquela reação, sorriu, docemente. Estendeu as mãos para a filha, que se aninhou e disse: “Pequena criança, a lição dos ciclos é, em verdade, a única lição da natureza. Nela residem o milagre da multiplicação, a benção do crescimento, as colheitas de tudo, o frutificar constante e a foice que nunca cessa. Inútil? Mas, meu amor, tudo o que eu faço é por Você!” A jovem voltou para Ela seus olhos espantados: ” Como assim, você precisa matá-lo por mim???” A Senhora prosseguiu:” Sim, pois quando você me pede Luz, eu tenho que produzi-la de um parto de estrelas – e isso explode mundos. Quando você me pede pão, é o corpo Dele que eu ceifo para servir à sua mesa. Quando você me pede água, são minhas entranhas que abro em farto oferecimento que te nutre. A Vida se alimenta da Vida, esta é a singela lição dos ciclos: para que a Roda gire é preciso ceifar, para que a Vida continue, é preciso morrer. Para que as coisas mudem é preciso deixar ir.” E Ela ergueu sua foice de prata, brilhante à luz da Lua que já se erguia. Tocou levemente a fronte do moribundo, que, em instantes, sorria, já no fundo do aconchegante ventre Dela. A Jovem piscava, olhando o corpo que brilhava na cor do Sol poente e se desfazia em líquido dourado, que alimentava a Terra. E a Senhora disse: “Hoje sorria e celebre, hoje cante e rememore, o Pai Caçador se foi e está oltando”. Pegou a mão Dela e encostou no ventre grávido. Sinta minha Filha, a Vida Dele em minhas entranhas.” Nesse exato instante, a menina se contorceu de dor e o sangue escorreu abundante por suas coxas e pernas e alimentou a terra. E Ela conheceu sua primeira lua de sangue nesse exato instante. A Senhora sorriu e a fez ver que a celebração tinha que ser ainda maior: eram agora irmãs em tudo. E as duas, abraçadas, deixaram o jardim, onde os primeiros flocos de neve caíam e , manchados com o sangue vertido pela Donzela, alimentaram as macieiras. Este é o Dia de Samhain, dia em que as maçãs tem sabor de saudade e de futuro, dia em que a Mãe, que já é a Velha, consola a Donzela, que é Ela mesma. E Elas, Aquelas Cujo Nome Não Pode Ser Dito, unidas pelo amor profundo ao Pai que se foi e retornará Menino de novo, continuam juntas, descansando no escuro, até o amanhecer de um novo tempo do Sol.
Mavesper Cy Ceridwen